Conteúdo produzido em parceria ISER / NEXO JORNAL. Publicado originalmente no Nexo Políticas Públicas em 02 out 2024
Em uma live com o líder da Igreja Videira, em Goiânia, pastor Aluízio Silva, Pablo Marçal descreve, em tom de “causo descontraído”, o que seria um diálogo típico nas ocasiões em que ele participa de um programa de televisão. Marçal narra que quando o seu interlocutor o apresenta como coach, ele se opõe à definição. À pergunta que se segue, naturalmente, “O que é você, então, afinal?”, ele diz responder: “Sou a imagem e semelhança do Criador”.
De um modo geral, essa live, que foi gravada há três anos, pode ser um ponto de partida interessante para se começar a explorar algumas questões que talvez sejam proveitosas para um entendimento da figura de Pablo Marçal como um novo centro de gravidade, que surge, da extrema direita. De fato, o relato da experiência dele na igreja evangélica parece antecipar coisas que vão aparecer depois. Por vezes, pode mesmo ficar a impressão de que ela se constituiu como uma etapa preparatória.
Marçal afirma que se dedicou, desde jovem, a “modelar” não só os ensinamentos como também a maneira como o pastor se projetava diante dos fiéis, com uma ênfase no seu magnetismo e na sua capacidade de persuasão.
Cabem aqui uma explicação: a expressão “modelar” é usada no coaching para descrever a prática de se inspirar em exemplos, não como imitação, mas como um processo de aprendizado e incorporação de características e comportamentos que ressoam com as próprias aspirações do indivíduo. O que está no cerne dessa elaboração é o caráter ritualístico de uma lógica de identificação.
Há, portanto, um esforço por parte de Marçal em enfatizar a importância do pastor Aluízio como seu mentor, a ponto de afirmar considerá-lo um pai. Ele ressalta, sobretudo, o papel que o pastor teria exercido na desmistificação da relação entre Cristianismo e dinheiro. “Uma das coisas, pastor Aluízio, que você colocou no meu coração foi acabar com o vitimismo, com religiosidade e ativar homens e mulheres no cenário empresarial”, afirma na live.
O termo “vitimismo” é frequentemente utilizado no discurso e na retórica da extrema direita, e ressoa de forma notável quando assistimos Pablo Marçal na atual disputa eleitoral pela Prefeitura de São Paulo. Tanto na live quanto nas falas como candidato, a ideia do “vitimismo” funciona como uma reprodução atualizada de um certo lugar comum no que se refere ao problema da pobreza (historicamente formado ao longo do processo de consolidação da ordem burguesa). Aquele tipo de afirmação que, em termos sucintos, busca atribuí-la a causas individuais e não estruturais.
“Pobreza não tem nada a ver com condição social, muito menos com humildade. Na raiz da palavra, pobreza significa improduvidade”, escreve Marçal em um de seus livros. Dessa forma, o discurso dele (que nesses momentos assume uma forte carga de ódio) responsabiliza os “esquerdistas” pela perpetuação do ciclo de miséria, uma vez que nessa compreensão, eles bloqueariam os caminhos rumo à prosperidade individual, e manteriam os pobres em uma posição de dependência do “assistencialismo” estatal.
Desta forma, Marçal vai avançando com a ideia de que é preciso combater a estigmatização do “dinheiro” e, em última instância, a dos empresários, que devem figurar e se posicionar como a “liderança” capaz de mudar o mindset das pessoas, conduzindo o povo pela chave do empreendedorismo para a “vida de prosperidade” (é esta a sua proposta de uma educação voltada para a “empresarização” das mentalidades).
Quanto à questão da “religiosidade”, a ideia passa a ficar mais compreensível quando se tem em mente que Pablo Marçal se insere de forma ambígua no universo evangélico. Em termos gerais, a sua figura pode ser associada ao conceito do “crente desigrejado” – uma espécie de diluição, para além dos limites da experiência mediada pela igreja, dos repertórios (retóricos, estéticos e mesmo litúrgicos) evangélicos – tendência muito presente na prática dos coach-influencers. O fenômeno parece ressoar naquilo que o próprio Marçal chama de “cristocentrismo”, ao defender para si uma liberdade de ação (“evangelista”) em relação à institucionalidade da igreja. Por isso, o Cristianismo, para Marçal, é um “lifestyle, um estilo de vida”.
Como aquele aprendizado, então, foi se desdobrando? No curso de sua trajetória como coach, empresário e influencer, Pablo Marçal foi acumulando milhões de seguidores em seus perfis de mídias sociais. E de fato, na relação direta, e com um pressuposto de tutela – isto é, de verticalidade, com investimento emocional –, que vai se estabelecendo entre coach e coachee, entre produtor de conteúdo e consumidor de conteúdo (e depois, entre candidato e eleitor), seus “seguidores” podem de fato encontrar uma espécie de impulsionamento subjetivo rumo à prosperidade.
Para dar um exemplo, entre outros possíveis: em um vídeo publicado nos stories da conta de Marçal no Instagram, uma seguidora-eleitora diz de forma entusiasmada: “São quatro anos com esse cara, ele mudou a minha vida, minha loja é nova, eu prosperei, eu tenho duas empresas… eu fui batizada, meu marido lê a Bíblia e eu faço questão de colocar isso aqui, tá? Quem quiser sair que saia, eu tô com você”.
Trata-se de uma figura, por um lado, percebida como impostora e oportunista; por outro, com um efetivo poder de mobilização ou catalisação de elementos socialmente latentes. Ao se consolidar, nas mídias sociais, como a personificação do ideal de prosperidade, e se destacar como alguém que, vindo do povo e por mérito próprio, conquistou sucesso econômico e a “arte de fazer dinheiro”, Marçal mobiliza um elemento de identificação e validação importante. Isto alcança diferentes estratos sociais que a ele se ligam, uma vez que a sua trajetória de arrivista serve para demonstrar (discursivamente) que é possível alcançar a ascensão social e econômica. A relação entre mentor-influencer e mentorado-seguidor fica lastreada por princípios e valores que explicam e complementam seu sucesso econômico, que poderá ser seguido, ou “modelado”.
É possível afirmar “complementam” o sucesso econômico, num sentido que faz parte da legitimação dele: de fato, no discurso de Pablo Marçal, o mundo da acumulação não se sustenta por si só. O sucesso econômico é apresentado não apenas como uma questão de estratégia de enriquecimento, mas como algo que precisa estar intrinsecamente ligado a certos princípios e valores – os quais por sua vez dão “calor humano” à vida da proatividade.
“Quanto mais gente você ajudar outras pessoas [sic], mais glórias você terá. Gere valor e as pessoas vão querer levá-lo para cima”. Princípios e valores que que poderão mobilizar, assim, por sua vez, temas conservadores fundamente difundidos que tocam nesta mesma chave de uma “re-emocionalização” do mundo: religiosidade e família tradicional (e assim papéis de gênero).
A Bíblia recebe o status de livro prescritivo e, portanto, como já abordado, vai além da esfera da religião como instituição. Chegamos, assim, ao conceito de “governalismo”, cunhado pela própria figura aqui apresentada: “Governalismo é o governo dos governadores. É uma mudança mundial no plano econômico, filosófico e social, de saída tanto do capitalismo, quanto do socialismo. O governalismo é essência. É quando a família governa”, é sobre “ter clareza da sua identidade, você é a imagem e semelhança dEle [Deus] e veio para governar”.
Os “governantes” são aqueles que fazem parte do que Marçal chama de “grupo de referência”, composto por aqueles mais ricos e que devem ser “modelados” (tomados como modelo). Ou seja, trata-se de uma proposta difusa de reestruturação paternalista da sociedade, pela via do empreendedorismo, em que no topo figura o grande empresário, cuja filantropia assume ares missionários.
Em um evento recente, dirigido a um público seleto de empresários, ao receber o prêmio “Legado Visionário”, Marçal discursou: “Nós não devemos ser nem capitalistas e nem socialistas, nós devemos ser ‘governalistas’, porque todas as nações foram fundadas no governo de uma família, um patriarca, uma matriarca, os filhos e a construção de bens. Se você é só capitalista você vai avaliar as pessoas e só vai condecorar as que têm capital. E depois que eu entendi esse conceito, eu olho alguns aqui que podem ser bilionários ou não, para mim não muda quem é você perto de uma família que tá numa favela, que Deus olha para a gente não pelo nosso capital, é pela imagem e semelhança que ele colocou em cada um. Então, espere o movimento novo acontecendo agora. Eu não estou entrando na política para fazer gracinha […]. O ‘José’ vai assumir essa cidade, essa cidade vai ter sete anos de prosperidade e o povo vai se levantar como nunca antes”.
Essa repaginação da filantropia empresarial, que posiciona Pablo Marçal como um líder com uma visão paternal messiânica, permite que ele se autoinvista de um papel de guia moral e espiritual. Em última instância, a negação “antissistêmica” da religião como instituição talvez se funda, afinal, em uma promessa (discursiva?) de desativação do Estado laico. Este parece querer religar aquilo que o Estado moderno separa, pela via da concentração – paternalista – dos poderes: algo de forte apelo àqueles que têm vivido o Estado laico, o Estado moderno e a própria democracia como decepção e insuficiência objetivas.
Foto: Reprodução Instagram @pablomarcal1
Mariana Cavalcanti Albuquerque é socióloga, doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autora da tese em andamento “‘Juntos até depois do Fim’: um estudo de caso com o coach Pablo Marçal e as confluências dos universos corporativo, religioso e político no life coaching”.