Ao longo das últimas três décadas, o número de políticos evangélicos cresceu vertiginosamente e este número pode ser facilmente contabilizado através da chamada bancada evangélica e também da Frente Parlamentar Evangélica (FPE) no Congresso Nacional. As diferenças entre frentes parlamentares e bancadas são explicadas em análises publicadas anteriormente na Plataforma Religião e Poder, mas o ponto inicial que devemos elucidar é: quem são efetivamente os deputados fazem parte da bancada evangélica?

E a partir desta categorização inicial, pode-se realizar questionamentos mais específicos: como estes deputados foram eleitos? O padrão de votos recebidos por eles é distinto dos demais candidatos? É possível verificar se o padrão de financiamento dos deputados eleitos difere dos demais? 

Além disso, o crescimento evangélico está associado à ascensão da direita e dos movimentos conservadores e reacionários às pautas identitárias e as que buscam a diminuição da desigualdade social. Por mais que não exista unanimidade dentro deste segmento religioso e que lideranças evangélicas mais progressistas tentem apresentar alternativas a este modelo conservador, existe uma clara hegemonia dos setores de direita no campo evangélico. É possível analisar em que grau esta hegemonia pode ser contestada?

Estas perguntas formam a base da minha tese de Doutorado intitulada “Financiamento de Campanha Política da Bancada Evangélica da Câmara Federal: uma abordagem com o uso de Mineração de Dados”. Como um dos principais fatores de sucesso eleitoral está associado ao financiamento das campanhas políticas, estudar como se dá o financiamento de campanha desses candidatos pode trazer à tona novos conhecimentos sobre o fenômeno eleitoral.

A partir de uma perspectiva marxista, talvez seja possível vislumbrar relações entre frações de classes e outros grupos de interesse aos políticos da bancada evangélica e novas abordagens podem ser encontradas ao relacionar quais frações de classe e grupos econômicos financiam quais políticos, se tal financiamento se diferencia dos políticos não evangélicos e para quais outros políticos esses capitais tendem a investir no âmbito do financiamento de campanhas.

A pesquisa buscou verificar duas hipóteses:

h1: o financiamento dos deputados evangélicos eleitos segue um padrão diferente dos demais deputados;

h2: novas classificações sobre os políticos evangélicos emergirão a partir do uso de técnicas de mineração de dados e tais classificações abrirão caminho para que cientistas e analistas políticos possam gerar novas teorias sobre o impacto e influência da bancada evangélica na política brasileira a partir da classificação encontrada.

O ponto de partida foi a montagem de um banco de dados a partir de várias bases de dados: a base de financiamento eleitoral, a base com os resultados eleitorais e a base do CNPJ. O resultado obtido passou a servir como referência para a plataforma FARMI (www.farmi.pro.br) e pode ser utilizado por qualquer projeto de pesquisa que necessite de dados eleitorais e de financiamento de campanha.

Para montar a base de candidatos evangélicos, foi realizado um levantamento documental e bibliográfico que buscou evidências em teses, dissertações, artigos científicos e matérias em jornais que um determinado deputado se declarava evangélico. Ou seja, o critério para definir um deputado como evangélico foi a sua autodeclaração. O resultado deste levantamento é de acesso aberto e pode ser obtido aqui (https://doi.org/10.5281/zenodo.5766214) e os gráficos abaixo mostram como se deu o crescimento dos evangélicos ao longo do tempo e como se movimentaram ideologicamente.

Gráfico 1 – Total de Deputados Federais Evangélicos de 1946 a 2019

Fonte: Elaborado pelo autor

Gráfico 2 – Deputados Evangélicos por Bloco Ideológico (%)

Fonte: Elaborado pelo autor

A força das corporações pentecostais

A pesquisa buscou também fazer um levantamento bibliográfico sobre a classificação das religiões e, em especial, das denominações protestantes no Brasil. Desde o início da pesquisa, havia uma preocupação em relação ao preconceito contra os evangélicos, ou seja, separar os líderes e políticos evangélicos envolvidos em escândalos de corrupção de líderes e pastores de milhares de pequenas denominações que prestam serviços religiosos relevantes ao povo evangélico. Desta forma, o conceito de corporação pentecostal foi cunhado com o intuito de deixar bem clara a diferença entre a religiosidade de uma parcela enorme da população brasileira e os interesses financeiros de um grupo de indivíduos que encontrou na fé uma forma de auferir lucro.

Efetivamente uma corporação pentecostal se diferencia das demais organizações religiosas a partir de três critérios: o domínio societário de um pastor ou pequeno grupo de pastores que controlam a organização; um braço midiático gerenciado por empresas externas à pessoa jurídica da Igreja, de tal modo que possam auferir lucro; e, por fim, a presença na política partidária com o objetivo de manter seguras suas atividades no âmbito jurídico, além de se beneficiar de ações do Estado e de uma maior exposição midiática dos deputados associados a elas.

A partir destes parâmetros, busquei listar as maiores corporações pentecostais existentes no Brasil a partir da literatura existente. A maior delas é a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), seguida da Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ), Igreja Internacional da Graça de Deus (IIGD) e a Igreja Cristã Maranata. É importante notar que só foi possível determinar as maiores, pois o processo de categorização das organizações que compõem o conjunto de igrejas que fazem parte das congregações das Assembleias de Deus e também das igrejas Batistas já não é tão trivial. O caráter federativo de tais organizações, no formato de “convenções” e “ministérios”, dificulta a identificação de concentração ou aglutinação de diversas pessoas jurídicas na mão de um único controlador.

Indiretamente, a partir da presença de determinados empresários na mídia, é possível listar algumas delas, tal como o Assembleia de Deus – Vitória em Cristo (AD-VEC), controlada por Silas Malafaia, e a Assembleia de Deus – Ministério Madureira (AD-MM), liderada pelo pastor Manoel Ferreira. Uma linha de pesquisa para tentar encontrar outras corporações pentecostais poderia trabalhar a partir destas figuras midiáticas e, através dos padrões de financiamento de campanha e da rede de empresas associadas a elas, encontrar outros empreendimentos que seguem esse “modelo de negócio”. E, para projeto deste tipo, um dos pontos centrais seria construir uma base com os financiamentos de campanha.

Financiamento de Campanha

Buscou-se agrupar os financiamentos de campanha de cada deputado por setor econômico sendo o corpus da pesquisa os deputados eleitos em 2018. Como já não era permitido a doação por pessoas jurídicas desde 2016, a estratégia para esse agrupamento foi identificar quais os sócios de empresas fizeram doações que totalizassem valores acima de R$1.000,00. 

Um resumo gráfico da distribuição das doações realizadas por setor econômico pode ser visto no gráfico 1. O que chama mais atenção no gráfico é o volume de receita que advém dos agentes partidários (AGP), ou seja, do Diretório Nacional, Estaduais e Municipais ou de outros candidatos. Entretanto, nota-se que os candidatos de partidos de Direita receberam mais doações por parte dos empresários que os demais.

Gráfico 3 – Doação por Setor Econômico e por Bloco Ideológico em 2018

O autor. Baseado nos dados do TSE

Para a primeira hipótese, um modelo de regressão logística foi utilizado já que a variável dependente é binária, isto é, busca-se um modelo explicativo para quantificar o efeito do financiamento recebido durante a campanha na probabilidade de um(a) deputado(a) federal ser ou não evangélico(a). O uso de tal modelo baseados em regressão logística tem sido frequentemente utilizados em pesquisas na área de Ciência Política.

O próximo passo foi processar os modelos de regressão. A tabela 1 mostra o resultado com as estimativas de efeito de cada variável que compõe o teste da hipótese e nela é possível constatar que há associação entre a receita total recebida durante a campanha pelos deputados federais e a classificação como evangélico. A estimativa bruta (modelo univariado) está significativamente associada com a razão de chances de ser evangélico quando comparado aos não evangélicos e indica que os evangélicos tendem a receber 60% menos verba que os outros, tendo o odds ratio (OR) de 0,41 (95% CI 0,35, 0,49; p<0,001).

Tabela 1 – Efeito da receita total recebida por deputados federais

CaracterísticasOR95% CIValor p
Receita Bruta (Não ajustada)0.410.35, 0.49<0.001
Receita Bruta (milhão R$)0.770.46, 1.270.3
Sexo
Masculino
Feminino3.181.61, 6.28<0.001
Capilaridade (10%)1.251.05, 1.490.012
Votos (100k)1.261.01, 1.730.10

A razão de possibilidades (em inglês: odds ratio; abreviatura OR) é definida como a razão entre a chance de um evento ocorrer em um grupo e a chance de ocorrer em outro grupo, ou seja, quanto maior a razão, maior a probabilidade.

Buscou-se também realizar uma seleção stepwise de variáveis que incluiu no modelo o partido, o sexo, a capilaridade e o número de votos dos deputados, ajustando a estimativa do efeito da receita total. A estimativa ajustada da receita total indica um efeito menor que a estimativa bruta, onde a receita dos deputados evangélicos é aproximadamente 23% menor que os outros deputados (OR: 0,77 (95% CI 0,46-1,27; p=0.3)). A OR ajustada não foi significativamente diferente de 1.

A interpretação conjunta destes dois resultados é que, na média, a receita total dos deputados evangélicos é menor que a receita total dos outros deputados. No entanto, o tamanho do efeito da receita, ajustado pelas outras variáveis, não pode ser estimado com precisão suficiente para quantificar sua magnitude.

Um outro resultado expressivo foi em relação à variável sexo. As deputadas mulheres pareciam ser maioria entre os evangélicos, sendo três vezes mais prováveis de serem evangélicas quando comparadas aos homens (OR: 3.18 (95% CI 1.61, 6.28; p<0.001)). 

Por fim, um outro ponto a ser considerado foi a capilaridade onde os deputados evangélicos atingem uma capilaridade 25% maior quando comparados aos outros deputados (OR: 1.25 (95% CI 1.05, 1.49; p=0.012)).

Clusterização

Para a segunda hipótese, foram utilizados diversos algoritmos de segmentação (ou clusterização do inglês clustering). A segmentação é uma das diversas técnicas baseadas em Mineração de Dados e busca categorizar objetos em função de seus atributos. O processo de segmentação clássico tem 2 entradas: o conjunto de objetos que se quer classificar (no nosso caso, os deputados) e uma indicação do número de grupos (clusters) que se quer formar. O resultado do processamento é uma nova informação que indica em qual grupo cada um dos objetos está contido. Um exemplo gráfico ilustra como se dá a clusterização. O primeiro gráfico mostra o conjunto de objetos a classificar, o segundo mostra como os objetos ficam agrupados a partir do algoritmo.

Objetos não categorizados


Objetos após a clusterização


Entretanto, quando não se sabe quantos grupos queremos formar, deve-se testar várias configurações para descobrir qual é a classificação de “melhor qualidade”. A qualidade do processo é medida através de algoritmos criados especificamente para este tipo de avaliação, permitindo assim a comparação entre diversos algoritmos e parâmetros.

O processo final de segmentação identificou dois clusters (cluster 0 e 1) e um grupo de outliers, sendo este último um grupo de deputados que destoavam muito dos demais. Os deputados do cluster (0) pertenciam a um espectro político mais ao centro e à esquerda, contaram com um financiamento maior por parte de pessoas físicas, continham uma capilaridade ligeiramente menor que a média, pertenciam a partidos maiores, recebiam mais recursos do partido e a receita do setor de serviços era bem mais expressiva que a do segundo cluster.

Já os deputados do segundo cluster (cluster 1) pertencem quase que exclusivamente a partidos de Direita e recebem doações elevadas do Agronegócio. Contém todos os deputados ligados a IURD, AD-MM e AD-VEC e quase todos ligados às outras corporações pentecostais como Maranata e IEQ.

Já o grupo de outliers era composto de deputados que receberam de empresários valores muito superiores em relação a média recebida pelos outros deputados eleitos e receberam, também em média, menos recursos dos agentes partidários. Foi possível notar um ponto interessante: com exceção dos deputados da Assembleia de Deus, nenhum deputado associado às corporações pentecostais está presente na lista de outliers e dois dos deputados – Onyx Lorenzoni (DEM-RS) e Fábio Faria (PSD-RN) – galgaram o posto de ministros do governo federal.

Efetivamente, pode-se considerar que a segunda hipótese da tese foi confirmada já que o índice de qualidade (silhoutte) foi satisfatório e também foi possível analisar o resultado obtido com critérios objetivos que condizem com a realidade. Entretanto, é importante ressaltar que, diferentemente da primeira hipótese, o resultado não tem efeito estatístico e tampouco é possível indicar um intervalo de confiança já que o número de deputados estudados é muito pequeno. Também não foi possível afirmar que existe um padrão de financiamento que diferencia deputados ligados às corporações pentecostais em relação aos demais deputados já que alguns deputados da IEQ e IIGD pertencem ao cluster 0 e diversos deputados que não se identificam com tais corporações também se encaixaram no cluster 1.

A confirmação da segunda hipótese mostrou que existe um padrão de financiamento que diferencia os deputados evangélicos de centro-esquerda dos demais. Apesar do número de deputados evangélicos progressistas eleitos ter sido muito pequeno na legislatura de 2018, foi possível verificar que havia uma diferença marcante entre eles, ao menos sob o ponto de vista de financiamento de campanha. Havia também uma expectativa de que fosse possível diferenciar os deputados ligados às corporações pentecostais ou então que outras classificações pudessem surgir do processamento mas os números não confirmaram esta expectativa.

Tabela 2 – Distribuição dos deputados por Ideologia

DenominaçãoCluster 0Cluster 1Outliers
Esquerda31
Centro591
Direta38410
Total119312

Tabela 3 – Distribuição das Denominações na clusterização

DenominaçãoCluster 0Cluster 1Outliers
AD2275
AD-MM2
AD-VEC2
Anglicana1
Batista374
Brasil para Cristo1
IEQ14
IIGD21
IURD22
Luterana12
Maranata2
Metodista2
Outras215
Presbiteriana151
Sara Nossa Terra1
Total119312

Achados e futuras pesquisas

A pesquisa partiu da premissa que a análise do financiamento de campanha através do uso de técnicas de mineração de dados poderia trazer novos conhecimentos sobre o fenômeno eleitoral e, a partir de uma perspectiva marxista, seria possível relacionar quais frações de classe e setores econômicos financiavam os políticos evangélicos.

Efetivamente, o resultado ultrapassou as expectativas do início da pesquisa. Através do método de regressão logística foi possível confirmar a primeira hipótese: os deputados federais evangélicos eleitos em 2018 tiveram um padrão de financiamento distinto dos demais. Apesar de utilizarmos um método estatístico “tradicional”, este só foi possível pois a base de dados utilizada para o processo de mineração de dados já estava disponível. Desta forma, a construção dos modelos estatísticos foi facilitada em função da base de dados consolidada já existente.

A inovação em agrupar os doadores a partir dos setores econômicos foi uma aposta que deu certo pois foi possível ter uma ideia de como tais setores financiavam os deputados. Entretanto, a quantidade de pessoas físicas que doaram valores elevados, mas que não foram associadas a nenhum setor, pode ser um indicativo que este processamento pode ser melhorado utilizando bases do CNPJ antigas ou então, através de outras técnicas que associem os doadores a um determinado setor. De qualquer forma, a base com o resultado agregado por setor pode constituir uma fonte de pesquisas futuras sobre o tema.

Por fim, a metodologia adotada abre caminho para novas pesquisas. Utilizando a mesma metodologia é possível encontrar padrões de financiamento, por exemplo, para os deputados da bancada católica, ou então para os deputados da bancada da segurança pública, geralmente chamada pela imprensa de “bancada da bala”. A metodologia também pode ser empregada para os deputados estaduais ou vereadores evangélicos e também para os deputados federais anteriores a 2018. Especificamente para os deputados federais eleitos em 2014 e nos anos anteriores, anos em que o financiamento privado teve um peso maior sobre o total financiado, talvez a variância dos valores investidos para cada setor econômico possam gerar uma clusterização que traga agrupamentos mais interessantes.

Foto: Banco de imagens Freepick.

Josir Cardoso Gomes é doutor em Ciência da Informação e Analista de Sistemas. Pesquisador no grupo Perspectivas Filosóficas em Informação (Perfil-I) e do Laboratório em Rede de Humanidades Digitais (LARHUD) ambos do PPGCI/IBICT

Referências 

FERNANDES, A. A. T. et al. Leia este artigo se você quiser aprender regressão logística. Revista de Sociologia e Política, v. 28, 8 jan. 2021. 

LACERDA, F. Assessing the Strength of Pentecostal Churches’ Electoral Support: Evidence from Brazil. Journal of Politics in Latin America, v. 10, n. 2, p. 3–40, 22 ago. 2018.

MANCUSO, W. P.; SPECK, B. W. Financiamento empresarial na eleição para deputado federal (2002-2010): determinantes e consequências. Teoria & Sociedade (UFMG), 2. v. 23, p. 103–125, jul. 2015. PEIXOTO, V. M. Eleições Financiamento de Campanhas no Brasil. Editora Garamond. 2016.