A conjuntura política das manifestações de 2013, do período pós-eleição de 2014, e, sobretudo, nos processos de impeachment da presidenta Dilma Rousseff e de formação do governo Michel Temer e a eleição de Jair Messias Bolsonaro, marcaram um dado novo no campo religioso brasileiro: a consolidação de uma direita religiosa (composta por católicos, evangélicos, judeus e espíritas) como ator político. 

Este agenciamento político-teológico, alinhado à direita cristã norte-americana, evidenciou uma nova relação entre religião e política no Brasil, de tal sorte que o ativismo político desses atores estabeleceu uma ressonância ideológica com outros setores da política institucional: a composição chamada “Bíblia, Bala e Boi”, por exemplo. Isto ocorreu na medida em que foram articuladas pautas e interesses em comum: economia (neo)liberal, moralidades e cultura.

Desse modo, o então candidato nas eleições de 2018, Jair Bolsonaro, assumiu as pautas da direita religiosa: retórica anticomunista, antipetista, antiesquerda, narrativa pró-vida e pró-família, (neo)liberalismo. Vale lembrar que a pastora e advogada Damares Alves, desde 2010, fora peça fundamental no tabuleiro de articulação entre a direita religiosa – em especial evangélica – e Jair Bolsonaro. A eleição do ex-capitão e de deputados e senadores evangélicos alinhados à direita religiosa,  deflagrou uma importante movimentação entre os Poderes Legislativo e Executivo. Por fim, a ascensão do pastor presbiteriano André Mendonça à mais alta corte da justiça brasileira, depois de ter passado por dois ministérios-chaves do governo Bolsonaro, foi o coroamento e a chegada de evangélicos aos três Poderes da República. Ou nas palavras do próprio Mendonça “a primeira reação foi dar glórias a Deus por essa vitória. É um passo para um homem, mas na história dos evangélicos do Brasil, é um salto. Um passo para o homem, um salto para os evangélicos”.

Ocorre que, embora Jair Bolsonaro tenha dado inúmeras provas de sua fidelidade aos compromissos firmados com a direita religiosa e um novo alinhamento político-teológico tenha se desenhado, ao que parece, ocorreu uma cisão no interior do apoio evangélico ao presidente da República. Desde 2020, com o início da pandemia de covid-19 e o desembarque do ex-juiz e ex-ministro da Justiça Sérgio Moro do governo federal, parece haver uma disputa não apenas pelo protagonismo, mas pelos processos de construção ideológica da direita religiosa.

Convém lembrar que o objetivo do presente ensaio não é delinear precisamente o enfraquecimento de Bolsonaro em relação aos evangélicos. O que se pretende é lançar luz sobre as clivagens que marcam as alianças religiosas deste grupo cristão com a política institucional. Ou seja, é preciso compreender a relação de evangélicos (e de qualquer outro campo) com a política a partir de suas condições de possibilidade, tanto de sua emergência quanto de suas transformações. Ademais, é importante pensar esta relação, em cada momento, como um feixe de iniciativas que ao mesmo tempo respondem a outras forças e desafios e articulam demandas.

Alguns fatos apontam para uma certa disputa no interior da direita religiosa. Em 2020, após acusações de que Bolsonaro estava interferindo nos trabalhos da Polícia Federal, a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), repudiou “a interferência do Presidente da República na Direção-Geral da Polícia Federal”. A Anajure foi uma apoiadora de primeira hora na campanha eleitoral de Bolsonaro, em 2018. Como disse a pesquisadora, colaboradora do ISER, Christina Vital, “antes, durante e depois da campanha presidencial de 2018, o presidente da Associação, por exemplo, fez questão de se mostrar próximo a Bolsonaro em publicações nas redes sociais e em matérias veiculadas pelos jornais, assim como em conteúdos no site oficial da ANAJURE”.

No final de 2021,  o presidenciável Sérgio Moro convidou o presidente licenciado da Anajure, o advogado Uziel Santana,  para coordenar a frente de evangélicos em sua pré-campanha pelo Podemos. Uziel Santana afirmou, em entrevista à revista Veja que, “muitos presidentes de denominações têm me dito que, depois dos graves erros do governo Bolsonaro, um grande sentimento de frustração tomou conta das suas igrejas. Havia uma esperança num projeto de transformação da sociedade e das estruturas de poder. Mas tudo isso ruiu na medida em que o próprio presidente não se demonstrou hábil para levar este projeto de transformação adiante”. Para o advogado, “Bolsonaro traiu os evangélicos”.

Por articulação de Uziel Santana, Moro, em evento com evangélicos em Fortaleza, no último 07 de fevereiro, divulgou sua Carta de Princípios aos Cristãos, formada por 14 compromissos com os quais, diz: “sempre pautaremos a nossa conduta junto à comunidade cristã do Brasil”. Na mesma semana em que divulgou o documento, Sérgio Moro postou em seu perfil no Instagram uma foto no Santuário de Padre Cícero. Tal postagem poderia passar despercebida, contudo, revela que o pré-candidato (assim como Bolsonaro em 2018) apostará na articulação com a direita religiosa, portanto, tentando articular o núcleo religioso “judaico-cristão”.

Outro fato importante se relaciona às atividades do teólogo evangélico reformado Yago Martins, um apoiador de Bolsonaro em 2018, com 698 mil inscritos em seu canal no Youtube, até a redação final deste artigo. Martins, frequentemente, publica vídeos em que expõe suas ideias sobre as pautas do anticomunismo, antiesquerda, antipetimo e às narrativas pró-vida e pró-família. Há algum tempo o youtuber tem feito críticas diretas ao governo Bolsonaro, tendo, inclusive, publicado, em maio de 2021, o livro “A religião do bolsonarismo: um ensaio teológico”. Nele, Yago Martins afirma que “o presidente não apenas usou da religião como meio de conseguir votos – como é comum a outros candidatos – , mas capitaneou votos para a criação de uma pseudorreligião”.

Martins respondeu em seu perfil no Twitter a uma frase do jovem ultraconservador, vereador de Belo Horizonte (MG), Nikolas Ferreira (PRTB) na “Governe Conference”, um evento promovido pela filial da Igreja Batista Lagoinha (Belo Horizonte/MG), em Orlando (EUA), em janeiro de 2022. O youtuber disse que “quem REINA é Jesus. A igreja pregar o Reino de Cristo através de evangelismo, serviço e amor. Nosso Reino não é deste mundo. Político “cristão” pregando dominionismo ao lado de FORAGIDO DA JUSTIÇA é de fazer corar de vergonha“. Ferreira havia dito no evento da Lagoinha que “a igreja precisa voltar a reinar”. Vale lembrar, ainda, que Yago Martins, no último 3 de fevereiro, realizou uma live com o pré-candidato Sérgio Moro.

É fato que, embora ainda mantenha seu apoio público ao governo de Jair Bolsonaro, o líder máximo da Igreja Universal do Reino de Deus, o bispo Edir Macedo, não deve tomar nenhuma decisão de apoio eleitoral até agosto de 2022, segundo apuração do jornalista Gilberto Nascimento. “No Rio de Janeiro, ao menos dois bispos da Universal mantêm conversas com representantes do PT sobre uma eventual reaproximação com Lula. O deputado federal e bispo Marcos Pereira, presidente do Republicanos, o partido político ligado à igreja, costuma dizer a colegas parlamentares, em conversas reservadas, não ver problema algum em apoiar o petista e ex-aliado”, escreveu Nascimento

Diante deste quadro, ainda em movimento, é preciso ter claro que a direita religiosa está em disputa. Daí decorre a necessidade de pensar o tabuleiro político evangélico em conflito entre direitas religiosas, uma vez que nem todas as expressões do discurso (neo)conservador são tão nítidas e igualmente reacionárias. Portanto, resta-nos compreender a existência de variantes discursivas que não se fecham para a necessidade de reformas sociais e políticas, desde que assegurada a “liberdade da Igreja” e as condições que a garantiriam: a economia de mercado, a propriedade privada, a liberdade religiosa, a separação entre Igreja e Estado, a autonomia discursiva da teologia sobre a política. 

No Brasil de 2022 não será mais possível compreender a atuação política de evangélicos (neo)conservadores de direita, mas sim de direitaS. Ao contrário de 2018, as questões não se colocam mais dessa maneira hoje. Não apenas não se trata mais de dois discursos em disputa (esquerda e direita), mas de várias modulações dessa tensão. Ademais, em raros casos, essas oposições são plenamente nítidas e desenvolvidas, o que significa que há diferentes composições entre elas. Portanto, compreendê-las constitui tarefa necessária.

João Luiz Moura é Mestre em Ciências da Religião (UMESP) e pesquisador visitante no Instituto de Estudos da Religião (ISER). Tem pesquisado religião, neoliberalismo e direito.

Foto: Caroline Antunes/Presidência da República e Gospel Prime

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Ronaldo de. A religião de Bolsonaro: populismo e neoconservadorismo. In AVRITZER, Leonardo; KERCHE, Fábio; MARONA, Marjorie. Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.

BURITY, Joanildo. A onda conservadora na política brasileira traz o fundamentalismo ao poder? In ALMEIDA, Ronaldo de.; TONIOL, Rodrigo. Conservadorismos, fascismo e fundamentalismos: análises conjunturais. Campinas: Editora da UNICAMP, 2018.

BURITY, Joanildo. Fé na Revolução: protestantismo e o discurso revolucionário brasileiro (1961 – 1964). Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011.
CARRANZA, Brenda. Evangélicos: o novo ator político. In  GUADALUPE, José Luis Pérez; CARRANZA, Brenda. Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século XXI. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2020.